Enquanto pequenos guerreiros lutam pela vida, o Estado boliviano vira as costas. Médicos e enfermeiros falham em humanidade. Famílias desesperadas buscam no Brasil a esperança que sua própria pátria lhes nega.
Publicado • 05/06/25 às 12:50h
Atualizado • 06/06/25 às 03:20h
A CASA ONDE A ESPERANÇA RESISTE, ENQUANTO A BOLÍVIA FALHA
Nas instalações do Instituto Luz do Amanhã (Jardim Norma – São Paulo), um refúgio há mais de 10 anos para famílias de crianças com câncer, a dor e a resistência se entrelaçam. Ali, pais e mães bolivianos – muitos deles com os rostos marcados pelo cansaço e os olhos cheios de lágrimas contidas – compartilham histórias que revelam um sistema de saúde falido, médicos desumanos e um governo que ignora seu sofrimento.
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A ÚLTIMA DESPEDIDA DE CRISTHIAN: O MENINO QUE A BUROCRACIA CONDENOU
No pátio da Casa de Apoio Luz do Amanhã, em São Paulo, o ar pesa mais que o habitual. Crianças — algumas com cabeças raspadas pela quimioterapia, outras com sorrisos frágeis demais para esconder o medo — formam um círculo ao redor de Cristhian, 11 anos. Seus olhos profundos, escuros como a noite de Cochabamba, guardam histórias de uma batalha injusta. O abraço que recebe das crianças alegra o momento com abraços que duram mais que o normal. Ninguém diz “até logo”. Todos sabem: esta é a última vez que veem o menino do boné azul-escuro NY.
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Cristhian volta para a Bolívia não curado, não em remissão, mas para morrer. O câncer, que poderia ter sido enfrentado com mais chances meses atrás, venceu — não pela falta de medicina, mas pela demora do Estado boliviano em liberar as passagens aéreas da estatal BoA (Boliviana de Aviación). Dois meses e meio de espera. Setenta e cinco dias em que células malignas avançaram enquanto pastas burocráticas circulavam em escritórios bolivianos.
— Meu filho lutou muito, sussurra Rosário, sua mãe, vestindo sua tradicional “pollera cor de rosa cochala”, enxugando suas lágrimas com um lenço branco. As mãos tremem ao arrumar as pequenas malas: dentro delas, além de roupas e remédios paliativos, levam cartas dos amigos da casa de apoio. “Te amo, amigo”, escreveu Julia, 7 anos, em letras tortas.
A cena é cortante. Enquanto as crianças — que conhecem a morte intimamente — entregam desenhos e abraços que doem, Cristhian segura o boné como um escudo, que cubre a ausência de cabelos. Sorri, mas não como antes. O Brasil lhe deu tratamento, mas não a cura; a Bolívia, sua pátria, lhe negou até mesmo a chance.
O Preço do Atraso ”Cada semana de atraso reduz as possibilidades de sucesso”. A justificativa para a demora? “Processos internos de autorização”. Enquanto isso, o tumor, agressivo, espalhava-se.
— Priorizar seu voo poderia ter mudado tudo, comentou o oncologista que acompanhou o caso. Quando finalmente chegou a passagem, já só restavam cuidados paliativos.
Agora, Cristhian viaja de volta a um sistema de saúde que não lhe ofereceu diagnóstico precoce, nem tratamento oportuno — e que, no fim, só apressou seu retorno para que morresse em solo boliviano. Enquanto o UBER partiu rumo ao aeroporto Internacional de Guarulhos, as crianças do Luz do Amanhã olham para o carro. Algumas choram. Outra, de 10 anos, pergunta: “Quando vou voltar para casa também?”. Ninguém responde.
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“PARECE QUE ENVIAM NOSSAS CRIANÇAS PARA MORRER NO BRASIL”
Cinco pais bolivianos, cujos nomes são omitidos por segurança, relataram à reportagem um cenário de abandono institucional e negligência médica.
- “Na Bolívia, não temos encaminhamento. Os médicos só dizem: ‘Vão para o Brasil ou Argentina’”, conta uma mãe. “Chegamos com um papel escrito à mão com o endereço do Hospital Santa Marcelina, sem saber português, sem saber para onde ir.”
. - As passagens humanitárias de BoA, que deveriam ser liberadas imediatamente em casos de vida ou morte, demoram semanas, meses para serem concedidas. “Enquanto isso, meu filho piora”, desabafa um pai.
. - “As crianças só chegam aqui nos piores estágios”, relata um profissional de saúde brasileiro. “Parece que esperam que estejam à beira da morte para mandá-las.”
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Um dos pais, fora das câmeras, foi ainda mais direto: “Parece que enviam nossas crianças para morrer no Brasil.”
O ABISMO ENTRE O TRATAMENTO NA BOLÍVIA E NO BRASIL
Enquanto na Bolívia o atendimento é frio, apressado e desumano, no Brasil, os pais encontram acolhimento, explicações detalhadas e respeito.
- “Lá, os médicos nem olham na nossa cara. Aqui, eles lembram o nome do meu filho, explicam cada procedimento, usam até tradutor no celular para que a gente entenda”, relata uma mãe.
. - O Instituto Luz do Amanhã oferece moradia, alimentação e orientação documental para famílias que chegam sem nada. “No hospital, a assistente social nos encaminha direto para cá. Aqui, conseguimos regularizar documentos, transporte gratuito e até cesta básica”, explica um pai.
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Mas a ajuda brasileira evidencia ainda mais a falha boliviana. Por que o Estado Boliviano não age? Por que os médicos não tratam essas crianças a tempo?
O DESPREZO NO CONSULADO BOLIVIANO: “NOS TRATAM COMO SE FÔSSEMOS INVISÍVEIS “
Se já não bastasse a luta contra o câncer, as famílias enfrentam humilhação no próprio consulado boliviano em São Paulo.
- “Os atendentes nos olham com desprezo, como se fôssemos um incômodo”, denuncia uma mãe.
. - Cobram por documentos que deveriam ser gratuitos, sabendo que os pais de uma criança com câncer não trabalham e vivem de doações. “Gastamos todo o dinheiro que tínhamos nos documentos cobrados pelo Consulado” afirma um pai de família.
. - “Falamos que nosso filho tem câncer, e eles nem reagem”, relata outro pai, com lágrimas nos olhos.
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Felizmente, no CRAI no CAMI e na Polícia Federal, o tratamento é diferente: “Lá, somos atendidos com humanidade. Não pagamos nada pelos documentos, por nossa situação vulnerável.”
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O INSTITUTO LUZ DO AMANHÃ: A ÚLTIMA ESPERANÇA
Mantido apenas por doações, o Instituto Luz do Amanhã sustenta centenas de famílias que chegam a São Paulo em busca de tratamento. “Precisamos de ajuda o ano todo. A demanda nunca para”, explica um voluntário.
Enquanto isso, o governo boliviano permanece em silêncio. Quantas crianças precisarão morrer longe de casa, abandonadas por seu próprio país, antes que algo mude?
Esta reportagem é um grito por justiça.
Pelos pequenos guerreiros que merecem mais do que o descaso de sua pátria.
Por Cristhian. Por todas as crianças que a Bolívia deixou para trás.
NOTA:
Embora o Estado Plurinacional da Bolívia possua um marco legal de proteção à infância e adolescência — estabelecido pelo Código Niño, Niña y Adolescente (Lei N° 2.026) —, sua aplicação efetiva enfrenta deficiencias estruturais no estado boliviano. Apesar das garantias previstas na legislação, muitas crianças e adolescentes no território boliviano continuam vulneráveis a violações de direitos, como a saúde e direito a vida, revelando uma discrepância entre o ordenamento jurídico e a realidade prática.
LEI Nº 2.026 CÓDIGO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTES DA BOLÍVIA
DIREITO À VIDA E À SAÚDE
CAPÍTULO ÚNICO ARTIGO 13
(GARANTIA E PROTEÇÃO DO ESTADO).
Toda criança e adolescente tem direito à vida e à saúde. O Estado tem a obrigação de garantir e proteger esses direitos, implementando políticas sociais que assegurem condições dignas para sua gestação, nascimento e desenvolvimento integral.
ARTIGO 14 (ACESSO UNIVERSAL À SAÚDE)
O Estado, por meio dos órgãos competentes, deve garantir a todas as crianças e adolescentes o acesso universal e igualitário aos serviços de promoção, prevenção, proteção e recuperação da saúde, bem como o fornecimento gratuito, para aqueles sem recursos suficientes, de medicamentos, próteses e outros serviços relacionados ao tratamento médico, habilitação ou reabilitação necessários.
*Pseudônimos
velando a segurança e
reserva da família