Aqui é a Bolívia! Viacrucis para chegar em casa

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Por Eduardo Schwartzberg
Publicado • 26/12/24 às 16:54h

Um dos maiores desejos de qualquer pessoa que mora fora do seu país é visitar sua família, especialmente durante as festas de final de ano. No entanto, esta tão esperada viagem torna-se geralmente um verdadeiro viacrucis, não só pela complexidade da mudança, mas também pelo reencontro com uma sociedade marcada pelos seus problemas persistentes.

A Bolívia é um país com uma vasta diáspora: um quinto da sua população está dispersa em diferentes países do mundo. Argentina, Brasil, Chile, Espanha e EUA são os principais destinos que concentram a maior parte desta população migrante.

A característica fundamental de uma diáspora é a dispersão do seu povo em outros países, sem que eles percam a ligação com o seu local de origem. No caso da Bolívia, este compromisso manifesta-se de forma tangível através do envio de remessas económicas, que constituem uma das fontes de rendimento mais importantes para o país. Além disso, o vínculo é mantido através do exercício de voto no estrangeiro, sendo que países como a Argentina ou o Brasil abrigam mais cidadãos bolivianos do que departamentos bolivianos como Pando.

Este laço também se expressa em retornos temporários, especialmente nas festas de final de ano, quando os migrantes visitam seus familiares. No entanto, este regresso implica enfrentar novamente os problemas estruturais que afectam a sociedade boliviana. Ao mesmo tempo, é também uma oportunidade para observar como os bolivianos e bolivianas conseguem conviver, resistir e enfrentar essas dificuldades.

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No caso dos migrantes bolivianos no Brasil, especialmente na cidade de São Paulo, a maioria trabalha no setor têxtil, em pequenas oficinas de costura. Essas pessoas fazem trabalhos de destaque para grandes empresas brasileiras, sob um modelo de maquila que gera enormes lucros para as empresas à custa de dias de trabalho extenuantes. Muitos bolivianos e bolivianas são obrigados a trabalhar disciplinadamente nestas condições para alcançar um objetivo comum: melhorar a sua situação económica ou, em muitos casos, pagar dívidas bancárias contraídas na Bolívia.

Em meio a essa realidade, as festas de final de ano representam uma esperança: a possibilidade de descansar do trabalho árduo e desfrutar de alguns dias com a família e amigos. A maioria dos bolivianos e bolivianas que residem em São Paulo, nestas condições, são originários da cidade de El Alto.

O trajeto de São Paulo para El Alto ou La Paz pode ser feito por via aérea ou terrestre. No entanto, a falta de recursos financeiros e a especulação sobre os preços das passagens tornam esta viagem uma odisseia. Na alta temporada, passagens aéreas, que normalmente custam cerca de 1.800 reais, podem custar entre 4.000 e 5.000 reais ou mais, devido ao monopólio exercido por uma única companhia aérea. Esta subida exorbitante obriga muitos migrantes a optar pela rota terrestre, o que implica três, quatro ou mais dias de viagem.

Por sua vez, as passagens de ônibus, que normalmente custam 250 reais, também aumentam consideravelmente nesta época, atingindo preços de 400, 500 ou até 600 reais. Em alguns casos, é possível encontrar bilhetes mais baratos em autocarros que não partem dos terminais oficiais, mas sim de pontos localizados nas ruas circundantes até a Rua Coimbra, conhecida como “a rua dos bolivianos”.

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A rua Coimbra, que na década de 1990 viu surgir os primeiros restaurantes bolivianos, evoluiu para se tornar um espaço que lembra a Rua Franco Valle de la Sobeja de El Alto. Lá se encontram restaurantes, bares, cabeleireiros, consultórios odontológicos, lojas e polerias, entre outros negócios, que moldaram um pequeno enclave boliviano em São Paulo.

A viagem de São Paulo para a Bolívia envolve aproximadamente 20 horas até a fronteira. Alguns viajantes preferem descer no terminal de Corumbá, no lado brasileiro, e apanhar um táxi até a fronteira; outros optam por chegar diretamente ao terminal de Puerto Quijarro, já em território boliviano, e retornar à fronteira de táxi, para fazer os procedimentos migratórios. No entanto, muitos evitam voltar para a fronteira para completar o registro, entrando e saindo do país sem qualquer documentação formal.

Entre esses viajantes está Juan, que faz este percurso após 18 anos. “Estou voltando para me despedir dos meus pais”, comenta. Uma decepção amorosa em sua juventude levou-o a emigrar para o Brasil, onde viveu nas ruas por dois anos, até que um migrante coreano o ajudou oferecendo-lhe trabalho como assistente em sua oficina de costura. Lá aprendeu o ofício e conheceu o seu atual parceiro, com quem formou uma família numerosa de sete filhos.

Depois de uma longa viagem, Juan chega de Puerto Quijarro a Santa Cruz às 4:00 da manhã e espera que o terminal abra para comprar uma passagem para La Paz. Exausto, só deseja chegar o mais rápido possível. Aproxima-se de um balcão para ver preços e horários, mas todos os ônibus saem à tarde. Ouça alguém gritar: “Para La Paz às onze! “. Aproxima-se do vendedor, que lhe oferece uma passagem por 250 bolivianos, garantindo que o ônibus é moderno, com ar condicionado, televisão e banheiro.

Decide comprar a passagem e usa o tempo de espera para comer uma sopa de charque que o conforta, além de tomar um banho. Adquira também um cobertor feito no Brasil, lembrando que ao chegar em La Paz o frio será intenso. Com calções e sandálias, você sabe que tem que se preparar para as baixas temperaturas.

Finalmente, entra no ônibus da Concórdia. Embora aparentemente seja “moderno”, com três filas de assentos e janelas seladas para ar condicionado, este último não funciona. Os passageiros reclamam e o motorista promete resolver o problema, parando meia hora depois para tentar.

A viagem continua e, embora o ar condicionado comece a funcionar, em breve surgem novos desconfortos: primeiro gotas que caem sobre os passageiros, depois verdadeiros jatos de água. Ajudante de motorista tenta resolver a situação com um “trapinho”, mas as reclamações aumentam. Depois de parar para comprar folhas de coca, os passageiros aproveitam para exigir que o motorista solicite outro ônibus. Depois de uma discussão, o motorista cede.

Uma hora mais tarde, chegam dois representantes da empresa, que relatam que um novo ônibus está a caminho e tentam acalmar os viajantes, dizendo que “estas coisas acontecem”. João, visivelmente irritado, responde: “Essas coisas acontecem quando as coisas são feitas de forma errada”.

Acrescenta que no Brasil estas situações não acontecem, ao que uma funcionária da Concórdia, com algum orgulho, replica: “Aqui é a Bolívia! “.

Enquanto esperam, as atividades continuam no local. Jovemzinhas estão sendo observadas trabalhando com a famosa e muito consumida “coca machucada”, que também é popular entre os migrantes bolivianos em São Paulo. Com marretas, eles batem nas folhas de coca misturadas com saborizantes, esmagando-as mesmo com o peito e as nádegas, rindo quando notam que estão sendo observadas.

Depois de três longas horas, o novo ônibus chega. Este, pelo menos, está limpo, ar condicionado funciona e não há fugas de água. Até tem uma TV que passa um filme estrelado por Sylvester Stallone.

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Um passageiro fica sem assento. O motorista, confuso, aproxima-se até a última fila do ônibus enquanto fala ao telefone, tentando resolver o problema. Lá encontra uma mulher venezuelana com a sua filha. Ela explica que comprou as passagens por 300 bolivianos cada, mas não recebeu nenhum ingresso físico. “Me venderam os bilhetes e nem sequer me entregaram nada”, diz ao motorista, visivelmente angustiada.

Após alguns minutos de discussão, a mulher é obrigada a ceder o seu lugar e se acomodar no chão. Assim viajará pelo resto do trajeto. Do seu lugar, o motorista liga para alguém no celular, gritando: “Porque você me vende sem entregar passagem! Que seja a última vez, quem tem que resolver os problemas sou eu! “.

A viagem continua com poucas paradas. Em uma ocasião, o motorista pára o ônibus argumentando que precisa comer. Explica que quando a empresa chamou ele para dirigir, ele estava prestes a descansar. Os passageiros cansados e resignados olham uns para os outros sem dizer nada.

Já de madrugada, o ônibus trava de repente. Escuta-se uma discussão entre motorista e motorista de trailer. Com um acento camba marcado, o motorista grita: “Sai daí, caralho! “. No entanto, o outro motorista não responde e a viagem continua sem incidente maior.

Finalmente, o ônibus chega em El Alto. Os passageiros começam a se preparar para descer, mas o motorista anuncia que não vai parar fora do terminal. “Mestre, precisamos descer”, insiste um dos passageiros. “Sem paradas, só no terminal”, responde o motorista com indiferença. Outro passageiro, irritado, recrimina: “Antes paravam em qualquer lugar! “.

Os passageiros trocam comentários, um deles pergunta: “Você tem os vídeos de quando estávamos esperando o ônibus? “. “Sim, eu tenho”, responde outro. “Passe-os para mim, vamos denunciar esta empresa” ambos concordam.

O ônibus desce a autoestrada até La Paz, e para logo debaixo da ponte Peru, “até aqui é só” grita o motorista, “mas estão me esperando no terminal” diz uma passageira, o motorista não diz nada, e olha para o celular como se não estivesse ouvindo. Os poucos passageiros que ficaram saem e em fila indiana, resignados andam com suas malas até o terminal, talvez lembrando das afirmação da funcionária da empresa Concórdia aqui é Bolívia!

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